RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar em que consiste a teoria da transcendência dos motivos determinantes no âmbito do controle de constitucionalidade e verificar se o Supremo Tribunal Federal a adota em seus julgados.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Teoria da transcendência dos motivos determinantes. Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O controle de constitucionalidade. 2.1. Principais sistemas de controle de constitucionalidade. 3. A teoria da transcendência dos motivos determinantes. 3.1. Posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes. 4. Conclusão. Referências.
O presente trabalho tem por objetivo analisar se o Supremo Tribunal Federal adota a teoria da transcendência dos motivos determinantes no âmbito do controle de constitucionalidade. Para tanto, será realizada pesquisa de cunho qualitativo, com a análise da jurisprudência pátria, bem como da doutrina especializada.
Sendo vinculante a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, ou seja, de observância obrigatória para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública, é de acentuada importância saber que parte do decisum obriga a estes entes, o que vai depender da análise da aplicação ou não da teoria da transcendência dos motivos determinantes.
Com efeito, a dúvida acerca da adoção desta teoria por parte da Suprema Corte tem gerado incertezas por parte das entidades que devem cumprir o estabelecido no julgado proferido em controle de constitucionalidade bem como na doutrina especializada, eis que é preciso saber qual a parte da decisão é de fato vinculante: a fundamentação ou o dispositivo?
Em suma, o estudo passará pela breve análise acerca do controle de constitucionalidade, o sistema de controle adotado no ordenamento brasileiro, para ao final verificar na jurisprudência da Corte Suprema o entendimento acerca da transcendência dos motivos determinantes e sua aplicabilidade ou não pelo Tribunal.
O controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos se caracteriza pela análise vertical de compatibilidade destas normas com a Constituição da República. Com efeito, esta forma de controle dos atos estatais tem por nascedouro as revoluções burguesas, em que se buscou a superação do Estado Absolutista e a implementação de um Estado de Direito.
A partir do movimento denominado de “constitucionalismo” é que se pensou em uma limitação do Estado por meio de um documento escrito, dotado de rigidez e supremacia, no qual se estabeleceu inicialmente, em uma vertente liberal, a limitação do poder estatal, garantindo-se assim uma obrigação de abstenção por parte do gestor público, bem como a organização da estrutura do Estado e, sobretudo, a concessão de direitos fundamentais de primeira dimensão.
Foi nos Estados Unidos da América que se realizou a primeira análise dessa compatibilidade, no famigerado caso Marbury v. Madison (1803):
Frequentemente apontada como a precursora do controle de constitucionalidade, a rigor, esta foi a primeira decisão na qual a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de ato legislativo do Congresso, tendo uma fundamental importância, pois, ao tentar superar as dificuldades políticas que envolviam o caso, Marshall traçou os fundamentos definitivos do exercício do controle jurisdicional. (NOVELINO, 2016, p. 171)
No Brasil, há a previsão do controle de constitucionalidade desde a primeira Constituição Republicana (1891).
Segundo as lições de (FERNANDES, 2017, p. 1.431), existem três principais sistemas de controle de constitucionalidade, a saber, o americano, o austríaco e o francês.
O sistema americano tem origem na já referido caso Marbury x Madison. Neste sistema o controle de constitucionalidade se dá pelo Poder Judiciário, e por todos os seus membros, o que se denomina atualmente de controle difuso de constitucionalidade. Aqui, o controle se dá sempre em relação a fatos concretamente deduzidos em juízo, sendo a verificação da compatibilidade da norma ocorrida incidentalmente, produzindo efeitos interpartes, ou seja, afetando apenas e tão somente as partes envolvidas no litígio, com efeitos retroativos. Reconhece-se o vício congênito da norma.
O sistema austríaco, criado por Hans Kelsen, tem seu nascedouro a partir da Constituição da Áustria de 1920. Com efeito, tal como o sistema anterior, no sistema austríaco o controle de constitucionalidade também é realizado pelo Poder Judiciário, mas apenas por um único órgão criado exclusivamente para tal finalidade, o “Tribunal Constitucional”. Denominado atualmente como controle concentrado, a análise de compatibilidade da norma com a Constituição se dá pela via principal, ou seja, a decisão é assentada na parte dispositiva do acórdão, não havendo um caso concreto a ser dirimido. Os efeitos dessa decisão se espraiam de forma erga omnes, atingindo a todos, com eficácia ex nunc, sendo certo que a invalidade da norma ocorreria apenas a partir da decisão, que possui natureza jurídica constitutiva-negativa.
Já o francês, criado em meados da década de 50, diferentemente dos demais sistemas, atribui competência a um órgão político (Conselho Constitucional) para a análise da constitucionalidade das normas.
Quanto à natureza do órgão de controle, o Brasil adotou o critério judicial misto, havendo uma verdadeira fusão entre os sistemas americano e austríaco. Isso porque, em sede de controle difuso todos os membros que compõe o Poder Judiciário podem realizar o controle de constitucionalidade, assim como compete ao Supremo Tribunal Federal a análise de compatibilidade da norma em sede de controle concentrado.
É a partir do estudo do controle concentrado de constitucionalidade que ganha importância o entendimento acerca da teoria da transcendência dos motivos determinantes. Isso porque, segundo a teoria geral do processo, via de regra, somente sobre a parte dispositiva da decisão judicial recai o manto da coisa julgada, sendo apta a vincular as partes, senão veja-se:
Estabelecer os limites objetivos da coisa julgada significa responder à pergunta: quais partes da sentença ficam cobertas pela autoridade da coisa julgada? O Código de Processo Civil assinala-as expressamente ao prescrever que não fazem coisa julgada: a) os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; b) a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; c) a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo (art. 469). Resulta do texto que apenas o dispositivo da sentença, entendido como a parte que contém a norma concreta, ou preceito enunciado pelo juiz, é apto a revestir-se da autoridade da coisa julgada material. Excluem-se os motivos, ou seja, a solução dada às questões lógicas ou prejudiciais necessariamente enfrentadas para chegar à definição do resultado da causa. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2015, p. 346)
Destarte, é possível afirmar que a coisa julgada alcança objetivamente o dispositivo da sentença ou do ato decisório. Saliente-se, entretanto, que o art. 503, §1º, do CPC (BRASIL, 2015), passou a prever que a coisa julgada também vai abranger, além da questão principal, a questão prejudicial interna, desde que o enfrentamento dela seja necessário para resolver o mérito. Nesse caso, tendo sido respeitado o contraditório prévio e a competência do juiz, tal decisão fará coisa julgada material.
Para além desta possibilidade, parte da doutrina especializada afirma que no controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal, os motivos determinantes da decisão também seriam atingidos pela coisa julgada, vinculando os demais membros do Poder Judiciário em outras demandas.
Isso porque há duas grandes teorias que debatem o aspecto objetivo da decisão no controle de constitucionalidade, ou seja, que parte do acórdão produz a eficácia erga omnes e efeito vinculante. De um lado a teoria restritiva, que afirma que somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Já a Teoria extensiva afirma que além do dispositivo, as razões de decidir que fundamentam a decisão também são vinculantes, admitindo-se sua transcendência.
Nesta situação é que se aponta a adoção da transcendência dos motivos determinantes, afirmando-se que, no controle concentrado, o efeito vinculante não se limita ao dispositivo, atingindo também os fundamentos principais da decisão (NEVES, 2020, p. 42).
Tendo por base o novo Código de Processo Civil, em especial o art. 927, inciso I, editou-se o enunciado doutrinário de nº 168 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), afirmando a adoção da teoria no ordenamento pátrio: “os fundamentos determinantes do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF caracterizam a ratio decidendi do precedente e possuem efeito vinculante para todos os órgãos jurisdicionais”.
Com este mesmo entendimento segue o escólio de abalizada doutrina:
Atualmente a adoção de tal teoria não depende mais de um alargamento dos efeitos objetivos da coisa julgada material, sendo na realidade decorrência da eficácia vinculante do precedente criado pelo julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (art. 927, I, do CPC). Acredito, portanto, que a teoria atualmente conta com previsão legal expressa, sem importar em contrariedade ao art. 504 do CPC. (NEVES, 2020, p. 70)
Destarte, os processualistas enxergam com bons olhos a aplicação da teoria, o que privilegia a segurança jurídica e tratamento isonômico em relação a jurisdicionados que se encontram em mesma situação fática. Resta saber o entendimento adotado pela Suprema Corte.
Em detida análise a jurisprudência da Suprema Corte, é possível verificar, inicialmente, a adoção da referida teoria (LENZA, 2020, p. 243). Na ADI 3.345/DF, julgada em 25.08.2005, que declarou constitucional a Resolução do TSE que reduziu o número de vereadores de todo o país, o STF conferiu efeito transcendente aos próprios motivos determinantes que deram suporte ao julgamento do RE 197.917, que declarou a inconstitucionalidade, incidenter tantun, de lei local do município de Mira Estrela/SP que fixava em 11 (onze) o número de vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2.600 habitantes somente comportaria 9 (nove) representantes.
Na época do julgamento dos mencionados casos, se o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade de uma lei de determinado Estado, a fundamentação utilizada nessa ação teria eficácia erga omnes e efeito vinculante, atingindo todas as leis de mesmo teor editadas por outros Estados, sem a necessidade de se propor novas ações diretas contra estas normas. Assim, se a norma “x” fosse declarada inconstitucional em virtude das razões “y”, a norma “z”, de mesmo teor da “x”, também seria inconstitucional pela aplicação das razões “y”.
Nos autos da Rcl 2.986, em análise ao pedido de liminar, o hoje aposentado Min. Celso de Mello se debruçou sobre a possibilidade de a parte da fundamentação da decisão proferida em sede de controle de constitucionalidade vincular com efeito erga omnes.
Disse o Ministro que o ato judicial atacado na reclamação, teria desrespeitado os fundamentos determinantes da decisão proferida na ADIn 2.868, eis que no bojo da ação, o Supremo reconheceu como constitucionalmente válida, para efeito de definição de pequeno valor e de consequente dispensa de expedição de precatório, a possibilidade de os Estados-membros fixarem valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, na redação dada pela EC 37/02, o que foi recusado pelo Tribunal do Estado de Sergipe, dando ensejo à propositura da Reclamação.
Consequentemente, concluiu o Min. Celso de Mello que o caso representaria verdadeira inobservância ao conteúdo essencial do acórdão proferido quando do julgamento da ADIn 2.868, caracterizando violação ao efeito transcendente dos fundamentos determinantes da decisão plenária da Suprema Corte. Diante disso, houve a concessão da liminar, suspendendo-se os efeitos da decisão reclamada.
Abalizada doutrina tem compactuado com este entendimento, reconhecendo na possibilidade de vinculação das razões de decidir um importante instrumento para garantia da isonomia e integridade do Direito:
O precedente apenas é garantido quando os órgãos judiciais estão a ele vinculados. Ora, a parte dispositiva não é capaz de atribuir significado ao precedente – esse depende, para adquirir conteúdo, da sua fundamentação, ou, mais precisamente, da ratio decidendi ou dos fundamentos determinantes da decisão. Na verdade, a eficácia obrigatória dos precedentes é, em termos mais exatos, a eficácia obrigatória da ratio decidendi. Daí a razão óbvia pela qual a eficácia vinculante não pode se limitar ao dispositivo da decisão. Só há sentido em falar em eficácia vinculante quando se pretende dar estabilidade e força obrigatória à ratio decidendi. Afinal, é a sua aplicação uniforme – e não o respeito à parte dispositiva da decisão – que garante a previsibilidade e a igualdade de tratamento perante a jurisdição, dando-se efetividade ao postulado de que casos semelhantes devem ser tratados de igual modo. Embora a eficácia vinculante se destine a conferir segurança jurídica, ela não se preocupa em garantir a indiscutibilidade ou a imutabilidade da precisa solução dada ao objeto litigioso. Ao contrário da coisa julgada, a razão de ser da eficácia vinculante está em sobretudo obrigar os tribunais e juízes inferiores a respeitar a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. Só há racionalidade em falar de eficácia vinculante quando se tem consciência, de antemão, de que se deseja obrigar ao respeito aos fundamentos determinantes. Restringir a eficácia vinculante à parte dispositiva da decisão é negar a sua natureza, constituindo contradição em termos. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.1.378-1.379)
Ocorre que, conforme apontado por CUNHA JÚNIOR (2015), recentemente o STF passou a rejeitar a tese da eficácia vinculante da razão de decidir no controle abstrato de constitucionalidade (Vide: Rcl 9.778-AgR/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 10.11.2011; Rcl 9.294-AgR/RN, Rel. Min. Dias Toffolli, Plenário, DJe 3.11.2011; Rcl 6.319-AgR/SC, Rel. Min. Eros Grau, DJe 6.8.2010; Rcl 3.014/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 21.5.2010; Rcl 5.703-AgR/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 16.9.2009; Rcl 4.448-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 8.8.2008; Rcl 5.389-AgR/PA, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 19.12.2007; Rcl 2.990-AgR/RN, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.9.2007).
Aliás, o próprio Min. Celso de Mello reviu seu entendimento acerca do tema, e em respeito ao princípio da colegialidade, negou seguimento à Rcl 2.986/SE, tornando a medida cautelar por ele antes deferida sem efeito.
O mesmo ocorreu nos autos da Reclamação Constitucional nº 10.604, julgada em 08.09.2010. Na ocasião, houve referência à questão de ordem na Rcl 4.219, na qual a maioria dos Ministros sinalizaram contra a teoria da transcendência:
Nas palavras do relator, Min. Ayres Britto, “... no julgamento da Rcl 4.219, esta nossa Corte retomou a discussão quanto à aplicabilidade dessa mesma teoria da ‘transcendência dos motivos determinantes’, oportunidade em que deixei registrado que tal aplicabilidade implica prestígio máximo ao órgão de cúpula do Poder Judiciário e desprestígio igualmente superlativo aos órgãos da judicatura de base, o que se contrapõe à essência mesma do regime democrático, que segue lógica inversa: a lógica da desconcentração do poder decisório. Sabido que democracia é movimento ascendente do poder estatal, na medida em que opera de baixo para cima, e nunca de cima para baixo. No mesmo sentido, cinco ministros da Casa esposaram entendimento rechaçante da adoção do transbordamento operacional da reclamação, ora pretendido. Sem falar que o Plenário deste Supremo Tribunal Federal já rejeitou, em diversas oportunidades, a tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes das suas decisões (cf. Rcl 2.475-AgR, da relatoria do ministro Carlos Velloso; Rcl 2.990-AgR, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence; Rcl 4.448-AgR, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski; Rcl 3.014, de minha própria relatoria)” (Min. Ayres Britto, j. 08.09.2010). (Cf., ainda, nesse mesmo sentido, Rcl 11.477 AgR, 1.ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.05.2012; Rcl 8.168, Pleno, j. 19.11.2015, DJE de 29.02.2016). (LENZA, 2020, p. 243)
Leciona Moraes (2017, p. 382) que o Supremo Tribunal Federal tem refutado a aplicação da teoria da transcendência dos efeitos, em especial no controle difuso, já que no julgamento da Reclamação 4.335/AC, ocorrido em 16 de maio de 2013, entendeu-se que não seria possível ao Poder Judiciário invadir competência constitucional do Senado Federal, prevista no artigo 52, X, da Constituição, que previu um mecanismo específico de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade, autorizando que o Senado edite resolução para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional incidentalmente por decisão definitiva da Corte.
Na publicação do informativo nº 887 de jurisprudência do STF, constatou-se que no julgamento da Rcl 2.2012/RS, ocorrido em 12.09.2017, reiterou-se o não acolhimento da teoria por parte da Corte, afirmando que o Plenário se manifestou contrariamente à vinculação das razões de decidir das decisões proferidas em controle abstrato de normas (Informativo 887 do STF).
A partir deste julgado, CAVALCANTE (2021) foi peremptório ao cravar que a Suprema Corte não admite a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Segundo o autor, o STF já se valeu da teoria, mas atualmente, a posição atual é no sentido de que ela não pode ser acolhida.
Não comunga deste entendimento FERNANDES (2018). O autor toma por base a situação vivenciada no bojo das ADIs 3406 e 3470, ambas julgadas em 29.11.2017. O objeto das ações envolvia lei estadual que proibia por completo a utilização do amianto, substância muito utilizada na indústria, porém, dotada de alto grau de periculosidade à saúde humana.
A utilização do amianto é regulamentada pela Lei Federal nº 9.055/95, que proibiu a extração, a produção, a industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de amianto, com exceção da crisotila. Ocorre que lei do Estado de São Paulo (Lei 12.687/2007) proibiu por completo o uso de produtos que contenham quaisquer tipos de amianto no território estadual, inclusive a crisotila.
Legitimada a propor ação objetivando o controle de constitucionalidade da norma apontada, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria ajuizou ADI contra o ato normativo estadual, sob o fundamento de que seria inconstitucional porque impôs uma restrição maior do que a prevista na legislação federal, tendo invadido a competência privativa da União para legislar sobre o tema.
No julgamento, o Supremo Tribunal Federal ressaltou que a lei federal admite o uso restrito do amianto, de modo que a lei estadual objeto de impugnação não poderia proibir totalmente o uso da substância, havendo verdadeira contrariedade ao estabelecido na norma geral editada pela União. Porém, contrariando as expectativas, a Corte não declarou a norma estadual inconstitucional. Ao contrário, a Corte entendeu que é a Lei Federal nº 9.055/95 que não é atualmente compatível com a Constituição, na parte que autoriza a utilização restrita do amianto.
Ressaltou CAVALCANTE (2017) que um dos fundamentos que levou a Suprema Corte a assim decidir foi o fato de que atualmente existe um consenso científico dos órgãos de proteção à saúde no sentido de que inexiste a possibilidade de uso seguro da crisotila, sendo a substância altamente cancerígena. Afirmou-se no julgado que a única forma de eliminar a possibilidade do risco de contaminação pela substância é o abandono de sua utilização, inexistindo hipótese de uso seguro do amianto.
O que chama atenção neste julgado é o fato de que a ADI tinha por objeto a lei estadual que abolia o uso do amianto, sendo que o STF julgou a ADI improcedente, o que acarreta na declaração de constitucionalidade da norma, tendo a Suprema Corte declarado incidentalmente que é a Lei Federal nº 9.055/95, que sequer estava sendo questionada, que é inconstitucional.
A Corte nada manifestou acerca dos efeitos da decisão que declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei nº 9.055/95, se erga omnes e vinculantes. Logo, não havendo expressa manifestação, a princípio os efeitos desta decisão apenas afetariam as partes envolvidas na demanda (inter partes).
Ocorre que nas ADIs 3406 e 3470, julgadas em 29.11.2017, que envolviam outras leis estaduais, de idêntico conteúdo da lei paulista que proibia integralmente o uso do amianto, o STF afirmou que, apesar de ter sido a Lei nº 9.055/95 declarada inconstitucional incidentalmente, os efeitos dessa declaração teriam efeitos erga omnes e vinculante, independentemente de atuação do Senado no sentido de promover a suspenção da eficácia desta norma.
Para grande parcela da doutrina este julgado representou o marco inicial na jurisprudência do STF da utilização da teoria da abstrativização do controle difuso. Grande entusiasta desta teoria, o Min. Gilmar Mendes ressaltou na oportunidade ter ocorrido uma nova interpretação da norma extraída do art. 52, X, da Carta Magna, no sentido de que, mesmo nos casos em que realizada a análise da constitucionalidade das normas em controle difuso, a decisão do plenário do STF gera de imediato efeito vinculante e eficácia erga omnes, cabendo ao Senado apenas e tão somente promover a intensificação da publicidade do teor da decisão. Houve o que se denomina de mutação constitucional em relação ao art. 52, X, da CF/88.
Outros doutrinadores entenderam a situação como sendo de adoção da teoria da transcendência dos motivos determinantes. Com efeito, em detida análise ao julgado é possível verificar que o que fez o STF foi atribuir eficácia vinculante sobre as razões de decidir que fundamentaram a ADIs 3406 e 3470, já que a inconstitucionalidade da Lei nº 9.055/95 se deu de forma incidental, tendo em vista que a norma sequer era objeto das mencionadas ações. “Nesses termos, foi conferido efeito vinculante a uma declaração incidental, que se encontrava na fundamentação do acórdão” (FERNANDES, 2018, p. 1.568).
Como bem observado por ZOUELN (2019), tratando-se de ADIs, em que se discutira a constitucionalidade das leis que proibiram o uso do amianto, o caso é nitidamente de decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o que leva a conclusão de que, na hipótese, respeitado entendimento diverso, não há falar em aplicação da teoria abstrativização do controle difuso, mas sim da teoria da transcendência dos motivos determinantes, que permite que todos os dispositivos reputados inconstitucionais em um processo de controle concentrado sejam atingidos pelo efeito vinculante, mesmo que tal reconhecimento tenha se dado apenas na fundamentação da decisão.
Nota-se que há acesa polêmica acerca da adoção ou não por parte do Supremo Tribunal Federal em relação à teoria da transcendência dos motivos determinantes. Em um primeiro momento, foi possível verificar que a jurisprudência do STF caminhava para a aceitação da teoria, afirmando expressamente em alguns julgados a sua adoção.
Posteriormente, houve uma superação do entendimento, passando o Tribunal a consignar expressamente, em inúmeros julgados, seu rechaço à teoria. Ocorre que, com o entendimento esposado nas ADIs 3406 e 3470, julgadas no ano de 2017, em que pese não ter havido uma manifestação do STF nesse sentido, constatou-se que o Tribunal se valeu da teoria da transcendência dos motivos determinantes ao vincular entendimento constante na parte da fundamentação de acórdão exarado em controle abstrato de constitucionalidade.
Assim, mesmo considerando que na maioria das vezes a Corte Suprema não aderiu à tese da transcendência, fato é que no ano de 2017 houve a adoção da teoria, o que certamente acarretará a retomada da discussão do STF acerca do tema em um futuro próximo.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 4.335/AC, Relator(a): GILMAR MENDES, julgado em 20/03/2014, DJe 22/10/2014. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur281416/false. 15/02/2021
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Artigo publicado em 23/06/2021 e republicado em 19/08/2024.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira/MG, FUNCESI. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário UNISEB COC. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, DARLAN SOARES. A teoria da transcendência dos motivos determinantes e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2024, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /56849/a-teoria-da-transcendncia-dos-motivos-determinantes-e-sua-aplicao-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 28 dez 2024.
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